sábado, 7 de junho de 2014

O habito de ler e o nascimento das bibliotecas!

Uma breve resposta ao Val André Mutran [1]
por Charles Trocate, fevereiro 2011

Por esses dias estive no Acampamento João Canuto, localizado no complexo de áreas públicas griladas a partir da década de setenta do século passado pelo grupo Quagliato próximo ao município de Sapucaia. Nada extraordinário não se tratasse de ocupação do MST que com seu nível de organização social se diferencia das demais ocupações ao longo da estrada (hoje rodovia federal 155).

Estão as vésperas de completarem cinco anos de acampados, embora a bandeira tremule inconteste, perdura o impasse. As famílias acampadas preparam algum destino, escamoteiam a miséria e, tomada a dimensão do conflito se posicionam por uma saída; o tempo do medo já passou estão estranhos a ordem do latifúndio, numa região tão esmagada por eles.

Alguém já perguntou o que se passa no mundo do acampamento onde a única razão que lhes conferem ímpeto é a pobreza material e a trajetória marcada a solavancos pela discrepância do Estado Burguês Brasileiro? A anomalia é recorrente e não se desfaz por decretos, impasses e confrontos estão estabelecidos desde sempre e, nem é preciso levantar a questão para além do cotidiano, o imperativo da violência atua em todas as dimensões, e resulta do Estado que nada mais exerce do que o monopólio da violência indiscriminada aos pobres do país.

Mas o que podem fazer aqueles cuja forma de ser ganhou características de - barbárie - morando em cidades, que são –não cidades- pois advindo de um processo civilizatório inconcluso que não permitiu incorporar a sociedade que se formava através do modelo agrário exportador aos ritmos da nova modernidade industrial? O que deveria ser a filha mais natural desse processo, a reforma agrária ficou como tarefa dos trabalhadores, da classe camponesa em formação e hoje é subjugada assim como organizações que surgiram ao redor da sua reivindicação histórica. A interpretação dos impasses e perspectivas desse país passa em grande medida, pela existência dos acampamentos de Sem Terra.

No acampamento hospedei-me na casa do Valdecir, um dos coordenadores do mesmo, que esteve junto com as famílias acampadas na fazenda Espírito Santo, no acampamento, que leva o nome do poeta Russo Vladimir Maiakóvisk, envolvidos no conflito do dia 18 de abril de 2.009 quando a Agropecuária Santa Barbara, junto com a burguesia agrária e escravocrata da região orquestraram um novo massacre. Valdecir me falou o que fazia antes de ir acampar na área com a mulher e mais quatro filhas, a última, Manuela, nascida recentemente.

Na maior fronteira agrária e mineral do país era não mais que um “vendedor” de mão de obra, sem que pudesse se valer dos direitos constitucionais, do logro empregatício. Os dados da delegacia do ministério do trabalho, são reveladores, há inclusive apelido para a lista de fazendeiros, que se retroalimentam dessa prática escusa, lista negra. Nada imoral? O que vale a máxima, porque me devoras?

Dispare é o conceito do trabalho, como faculdade humana em sua organização política e social, com a exigência do momento e o desenvolvimento das forças sociais produtivas em um século atrasado na região por conta do modelo de desenvolvimento conservador, concentrador de renda e de riqueza, onde a inteligência clássica nada pode oferecer, pois não concebem outro mundo se não o da fazenda e sua jurisdição – trabalho análogo a escravidão, apropriação dos ecossistemas e biodiversidades, e uso privado dos recursos estatais- incorporando-o exclusivamente aos seus interesses e, retardando como opção de classe as transformações, já prontamente reivindicadas, num longo movimento contra a ordem. Numa única palavra, mesmo os acampamentos organizados pelo MST, cumpre a duras penas processo civilizatório, que nenhuma fazenda, em sua organização industrial, poderá no máximo da sua exigência, fazer!

Na casa (lugar, destino e território) do Valdecir há uma pequena biblioteca, ou como poderíamos dizer, há o nascimento de uma biblioteca e junto à emoção de ler livros, está intelectualizado sobre os mais diferentes conhecimentos, dialoga com coerência sobre as mais variadas questões, ressalta as encruzilhadas do nosso tempo, filosofa de maneira culta e popular. É o conhecimento desvelando realidades, num tempo que conhecimento e realidades andam estranhos e paradoxais. A mim não é espanto, mais sobre que prerrogativa estes homens, mulheres e crianças aprendem a ler, a escrever e a ter livros em casa? Não como troféu antigo guardado no sótão, lembranças de um ‘tempo’ como alguns os têm nos setores mais abastados da sociedade, mais como algo libertador e construtor de novas imaginações!

Por isso, pus-me a refletir - como exige o momento de impasses -, não há combinação mais justa, aqui não falo da justiça rota, inconseqüente, do que livros e os Sem Terra, que sem claudicar, assombram não porque são fantasmas indesejados, mais porque portam a poderosa expressão, “contra a idéia da força a força das idéias”, constroem escolas, eliminam o analfabetismo, chegam à universidade e fazem nascerem bibliotecas, não só para esses dias mais para a vida toda e o fazem se livrando de dogmatismos, numa sociedade tão dogmatizada, pela pobreza, pelo mercado e pelas relações de poder.

Posso afirmar, onde há um Sem Terra há uma biblioteca ainda que em nascituros e, há leituras de mundo, o que não é privilégio, é o único arsenal que possuem para os embates, para superar os desencontros políticos, econômicos e culturais, que vive o país, no seu momento de conciliação burguesa. Legitimam-se pela capacidade de falar e fazer. Nunca é demais afirmar, que o Estado Brasileiro é a mais potente arma de exclusão social; ao seu redor uma burguesia, com características que são só suas, são patologias, escreveu Florestan Fernandes, ela é ao mesmo tempo, anti-social, antipopular, antidemocrática e subserviente aos interesses imperialistas. O que dizer do tacanho comportamento da sub-burguesia paraense e da grande região Carajás, que vai da riqueza a pobreza a um só passo?

O livro é em nossa sociedade um objeto demasiadamente caro, o que considero um bloqueio à inteligência, bloqueio de muitos outros, mas andando pelo acampamento percebi nas conversas e reuniões, a novidade que portam os Sem Terra: a de quererem democratizar a terra, cultivar o local que é identidade, como descreve Alfredo Bosi, em sua “Dialética da Colonização”, de reivindicar livros e conhecimentos, não como algo hipnótico mais como prática dialética. Nas pequenas e muitas bibliotecas pessoais e coletivas que vi, atentamente percebi, universos bem paralelos, não estão lendo livros de auto-ajuda, desses que há aos borbotões nas livrarias ou shopping Centers, livros que saram as doenças subjetivas de uma sociedade cada vez mais empobrecida, moldada a ignorância, onde o livro é mais que nada. Reina o príncipe midiático, fazendo a realidade fábula, de maneira esnobe, fantasiando os que ainda não sabem querer!

Tem os Sem Terra bibliotecas de quatro, cinco, oito, vinte livros, muitas e diversificadas obras, em prateleiras ou em cima de pequenas mesas, nas salas próximas as janelas e ou em estante improvisadas. Vi, Verde Vagamundo e Transtempo de Benecdito Moteiro, Miguel Miguel de Haroldo Maranhão, Introdução à Filosofia da Arte, Benedito Nunes, Rebanho de Pedras, de Ademir Braz, Chove nos Campos de Cachoeira de Dalcidio Jurandir; Muitos escritores latinos americano, de Eduardo Galeano, Octávio Paz, José Saramago, Florestan Fernandes, Thiago de Mello, Eneida de Morais; Obras filosóficas, sobretudo Marx, Gyorgy Lucakács, Carlos Mariategui, Vicente Salles, Darci Ribeiro, Sergio Buarque de Holanda, Vladimir Maiakóvisk tantos e tudo o que possa imaginar, e há escritores atualíssimos, pois como sabem, os Sem Terra circulam, andam captando o que há de melhor nessa pátria chamada humanidade.

Como dito anteriormente é com esse arsenal, que reivindicam a Reforma Agrária; há tempo não podem esperar, possuem a paciência perigosa, Valdecir e os demais estão aprendendo entusiasticamente que “ser culto é o único modo de ser livre, ser livre é o único modo de ser culto”!


Charles Trocate

Marabá

Fevereiro de 2.011

[1]Este texto foi publicado no www.hiroschiborgea.com.br, é uma breve resposta originada de polemica sobre a criação do Estado de Carajás com o Val André Mutran. Particularmente sobre o Estado de Carajás minha posição está explicitada numa outra carta endereçada ao Ribamar Ribeiro Junior. Ainda escrevo outro texto para completar minha visão sobre este acontecimento “A criação do Estado de Carajás será obra da desobediência civil, mais não nessa conjuntura”.